Alexandre Parafita, investigador do Centro de Estudos de Letras da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, acaba de lançar o seu terceiro volume «Património Imaterial do Douro», dedicado às narrações orais dos concelhos de Sabrosa e Vila Real. Na obra, o autor relata «velhas necrópoles onde se narram lendas de procissões nocturnas de almas penadas», lugares onde os lobisomens «cumpriam os seus fadários» e «rituais de bruxas e seres diabólicos». Para o coordenador científico do Plano de Inventariação do Museu do Douro, muito há ainda para fazer nesta área e deixa o alerta: «o património imaterial está e continua a estar desprotegido».
Café Portugal – Como caracteriza este terceiro volume da obra «Património Imaterial do Douro» dedicado aos «narradores da memória»?
Alexandre Parafita – Este volume assume-se, claramente, como uma necessidade de promover a cultura da memória, num tempo de globalização com consequências irremediavelmente desintegradoras das identidades. Assim, tomando a região do Douro como modelo, procura-se dar a conhecer e perceber este imenso filão activo de Património Imaterial que está na espiritualidade da paisagem e na interpretação mítica dos diversos fenómenos culturais do povo. Fica assim a saber-se algo mais sobre um dos lados mais ocultos e misteriosos do Douro Património Mundial: o Douro das memórias, dos mitos, das lendas, das crenças e das inquietações das gentes que, ao longo dos séculos, construíram a paisagem duriense.
C.P. – Pode dar-nos alguns exemplos destes narradores, portadores da memória oral?
A.P. – Por exemplo a Senhora Judite Mesquita, de Sabrosa, que nos explica porque razão o povo acredita que o menino que está no brasão de um velho palacete da vila é o último dos Távoras que uma criada conseguiu salvar da ira assassina do Marquês de Pombal. Ou então, o Senhor José Marques Soares (Zé Carcereiro), também de Sabrosa, que conta sobre um lobisomem que percorria as sete freguesias enquanto davam as 12 badaladas na torre da igreja. Ou o Senhor Raul Carvalho (capitão Carvalho), de Borbela, Vila Real, que recorda as angústias da alma penada de um homem da sua aldeia que, em vida, emprestava dinheiro a juros.
C.P. – Que pode o leitor encontrar de diferente neste terceiro volume e o que o distingue dos dois primeiros?
A.P. – As diferenças estão nos enredos das histórias e nas características específicas dos territórios. O primeiro volume foi sobre o concelho de Tabuaço, um território muito marcado pela presença dos mouros históricos, isto é os mouros de verdade, e por isso as narrações lendárias têm uma componente histórica muito forte. O segundo volume foi sobre os concelhos de Carrazeda de Ansiães e Vila Flor, e nesses a componente mítica dos mouros afasta-os da componente histórica, pelo que aí abundam mais as lendas de mouros encantados, subterrâneos, guardiões de tesouros, sendo que a presença do livro de S. Cipriano é recorrente nas narrações. Quanto ao terceiro volume, sobre os concelhos de Sabrosa e Vila Real, este cobre um território muito marcado pela religiosidade, habitado por populações idosas muito influenciadas pelo sobrenatural cristão e pagão, pelo que são recorrentes as alusões ao suplício de almas penadas e lobisomens e ao recurso a rituais de bruxaria. Achámos neste trabalho velhas necrópoles onde se narram lendas de procissões nocturnas de almas penadas, achámos lugares em Sabrosa, São Cristóvão e Provesende, onde os lobisomens cumpriam os seus fadários, bem como lugares onde aconteciam os rituais de bruxas e de outros seres diabólicos.
«Património imaterial: um verdadeiro filão de descobertas»
C.P. – Qual a importância de documentar estas memórias no âmbito do património imaterial?
A.P. – O valor objectivo deste Património é imenso, inclusive para o estudo da ciência histórica. Com base neste trabalho, estaremos em condições de estimular e potenciar projectos de turismo cultural e turismo do imaginário e outros associados aos lugares de memória da região. Por outro lado, há que reconhecer que a memória oral sempre foi e sempre será um recurso importante na reconstrução da História. De resto, muitos documentos históricos tiveram, em algum tempo, a memória oral como fonte credível. Muitas lendas, que tiveram a oralidade como meio exclusivo de transmissão, têm sido fundamentais para a descoberta de vestígios arqueológicos no nosso território, e têm permitido também equacionar factos históricos ignorados, ou reequacionar outros que vêm persistindo em nebulosas mais ou menos controversas. Por exemplo, neste trabalho, com base numa lenda sobre uma imagem enigmática de um Cristo doado pela rainha Santa Isabel a Vila Real, que foi depois enterrado, mais tarde desenterrado, gerando inúmeros milagres, e depois desaparecido para parte incerta, conseguimos localizar o seu paradeiro e fotografá-lo. O património imaterial é isto: um verdadeiro filão de descobertas.
C.P. – Como olha para a forma como tem sido tratado o Património Imaterial no país?
A.P. – Tenho verificado que a mediatização que vem rodeando algumas classificações de Património Mundial pela UNESCO, como foi o caso do Fado, a Dieta Mediterrânica e agora o Cante Alentejano, tem chamado a atenção para a importância do Património Imaterial. Contudo, uma coisa é certa: quando se trata de lançar mãos de bens culturais a classificar, chegam-se sempre à frente os lóbis políticos, na ânsia dos holofotes mediáticos, e que pouco ou nada se preocupam com os riscos que corre o património imaterial profundo, que se extingue de ano para ano com o desaparecimento dos seus intérpretes, aqueles a que chamo «narradores da memória». Este património está e continua a estar desprotegido. O que eu estou a fazer não passa de uma gota de água em relação ao que é necessário fazer. O meu trabalho é uma luta contra o tempo. Alguns dos meus narradores desapareceram no decorrer dos dois anos que levou este último projecto. Já não os encontrei quando os procurei segunda vez. Dois anos apenas é muito tempo para quem contabiliza ao minuto os dias que tem de vida.
C.P. – Tem outros trabalhos na calha nesta área do Património Imaterial?
A.P. – Continuarei a resgatar memórias e a estudá-las. Mesmo que para os poderes instituídos este trabalho e esta preocupação não sejam prioridade, não me inibirei de continuar e dar voz, enquanto é tempo, aos narradores da memória. Ao partirem de vez, levam consigo o saber e o conhecimento que trouxeram das gerações precedentes. E esse é um património irrecuperável. Muitas das lendas que só eles conhecem estão ligadas a lugares e a rituais hoje esquecidos, transformados ou extintos, razão por que, desaparecendo os seus intérpretes naturais, este património extingue-se pura e simplesmente.
Autora da entrevista: Ana Clara / Fonte: Café Portugal
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